terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Origem da familia da Dona Aurora

Prefácio do livro o Baú da Dona Aurora

Nos últimos trinta anos tenho lido inúmeras lápides de túmulos, folhei livros antigos no Arquivo Historico do RS e Arquivo Público do Estado, consultei os arquivos da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, enviei fax, e-mails, telefonei, contatos com internautas. Folhei livros de registros em Vianden, Luxemburgo com um desejo de saber alguma coisa registrada sobre meus ancestrais.
Às vezes lastimo que não tenha procurado mais, pois muitas vezes estive próximo destes locais, no Brasil, em viagem de trabalho. Mas tudo tem seu tempo certo. Este tempo é agora, revisar o que minha mãe contou para seus seis filhos, noras, netos, bisnetos e amigos e o que meu irmão José Antônio registrou pacientemente nos últimos anos. Como sociólogo, me preocupei em garimpar dados para contextualizar essa trajetória e, dessa maneira, cotejar história de vida com acontecimentos do período, como filho esse resgate significou um gesto de apreço e de reconhecimento para com essa grande mulher que na sua trajetória abriu bem os olhos para acompanhar e fazer uma leitura dos fatos vividos com uma grande curiosidade.
Meu ponto de partida foi de uma conversa nos anos 60 com meu falecido tio Felício que contou que o tri-avô materno fora um oficial do Exército Prussiano contatado pelo Governo brasileiro nos preparativos da Guerra do Paraguai, e que se instalou em Santa Maria. Mas as datas não coincidiam. Afinal essa guerra ocorrera entre 1865 e 1870. Meu bisavô José Mathias, nascido no Brasil em 1852, treze anos antes do conflito entre estas nações e sendo filho de mãe brasileira, sugeria que a vinda de meu tri-avô deveria ter ocorrido no ano de 1850.
De fato: A Guerra do Paraguai, politicamente, começou em 1850, e aí o meu tri-avô Johannes Matheas Hinckelmann entra na história, e vem dar nestas bandas do pampa gaúcho. Ele participara na Europa da Guerra de Schleswig-Holstein entre a Prússia e a Dinamarca entre 1848-1851. Terminada a guerra os militares desmobilizados receberam ofertas de trabalho no Brasil e nos EUA.
O Império brasileiro em 1851 contratou 1800 homens do exército prussiano e outros voluntários na Alemanha para assessorar os combatentes brasileiros e uruguaios contra as tropas do “ditador” argentino Rosas.
Para os prussianos o Império brasileiro prometeu quatro anos de contrato e que, para quem quisesse um lote de terra de 622 mil braças (mais ou menos duas e meia colônias de terra) a escolher, se tornar colono ou regressar a Europa com passagem paga.
A batalha em si durou pouco, apenas 300 combatentes venceram o “inimigo castelhano” numa única batalha em Monte Caseros, no lado argentino de quem está em Barra do Quarai na beira do Rio Uruguai. As promessas não foram cumpridas para muitos combatentes. Aqueles que não desertaram e preferiram cumprir o contrato de tempo de serviço, vagaram a pé pelos campos do Quarai, por Alegrete, São Gabriel, Cachoeira do Sul e Rio Pardo patrulhando o pampa gaúcho. Na região de Rio Pardo, nesta época (1850), floresciam duas novas colônias formadas por imigrantes alemães. Santo Ângelo (Agudo) e Faxinal do São João (Santa Cruz do Sul) que abrigaram também muitos destes militares, ou mercenários, conhecidos na história gaúcha como “Os Brummers ”. Mais tarde alguns se tornaram comerciantes em Porto Alegre, artífices em São Leopoldo, agrimensores nas demarcações das estâncias e dos lotes aos europeus que chegavam e na legalização dos lotes de posseiros “nacionais” e interpretes. Dois foram deputados provinciais. Um deles, Barão Von Kahlden , casou-se com um gaúcha e comprou imensas áreas de terras as margens do Arroio Soturno, local escolhido por alguns combatentes. Poucos voltaram a Europa. A maioria que ficou em solo gaúcho ficou como colono, tomando como esposas filhas de estancieiros e de peões. Mulheres “nacionais”. Foi o caso do seu Johannes ou João, meu tri-avô que veio junto com seu irmão Henrique para pelear no pampa e se aquerenciou com “nacionais”. No caso do avô João, foi com uma descendente de espanhóis (Cavalheiro) e açorianos (de Chaves, nos Açores) a dona Juliana de Chaves Cavalheiro, avó Júlia, filha do seu Francisco Porfírio, com uma grande estância de gado crioulo à margem direita do Arroio Soturno, afluente do Rio Jacuí, próximo da atual sede municipal de Silveira Martins. Morou na terra do sogro, talvez servindo, nos primeiros tempos, como protetor da fazenda contra os “desordeiros” ou da ganância dos vizinhos, nas cercanias de Santa Maria da Boca do Monte e Cachoeira do Sul. Essas planícies abrigavam os maiores latifúndios da região ao pé da Serra de São Martinho e banhadas pelo rio Jacuí eram povoadas por escravos fugitivos, açorianos, viamenses, riograndinos e lagunenses, paulistas e mestiços indígenas da tribo Tape.
Durante o Império, até 1875 a entrada de imigrantes era apenas para os Prussianos (meus ancestrais Bourscheid vieram do Luxemburgo em 1861 registrados como lavradores Prussianos, mas eram tecelões urbanos) a escolha em parte tinha relação à nacionalidade da mãe do imperador (Dom Pedro II) Dona Leopoldina que era germânica e, também, devido a uma prática antiga de contratar mercenários para engrossar e treinar as fileiras de combatentes no controle das fronteiras. Esses militares solteiros, como o seu João e o irmão Henrique ao tomarem como esposas mulheres brasileiras assimilaram os costumes gaúchos em quase sua totalidade, e contribuíram na formação de grupos sociais muito diferentes dos grupos familiares de imigrantes alemães referenciados na história gaúcha que se isolaram e formaram uma sociedade à parte no século XIX e até meados do século XX.
Esta região, meio caminho entre a pampa e a zona de mata das Missões, na via terrestre entre o Paraguai e Rio Grande podemos aceitar ser o local onde se desenvolveu o tipo característico do “gaúcho”.
E esse meu tataravô João devia ser o “tal do tipo gaudério”. O casal só teve um filho. O José Matias (Mateus), em 1852, fruto de um casamento luterano na paróquia de Agudo e anos depois, em 1864, estimulado pelo conterrâneo Von Kaldhen, largou a família e foi até a freguesia de Santa Maria da Boca do Monte para fazer parte do grupo organizado pelo teuto-brasileiro João Niederauer Sobrinho, (futuro sogro do “Tio Gabriel”) morador da colônia do Pinhal para combater no Paraguai.
Depois de treinar escravos, índios e brasileiros voluntários partiram em 1865, sob o comando do General Osório, como membros da “Bateria Alemã”, para a campanha do Paraguai. Pelearam nas batalhas do Avaí e de Humaitá até a rendição dos paraguaios e terminado o conflito os sobreviventes que regressaram aos seus lares ganharam do Império, aos escravos a alforria e para todos áreas de campo do tamanho relativo aos serviços prestados. Cabendo ao seu João duas colônias de terra na Linha Arroio do Lobato, ao pé da Serra de São Martinho, ou da “Boca do Monte”, enquanto a avó Júlia ficou morando com os Chaves Cavalheiro, no Soturno, separando-se, portanto o casal. Seu João se bandeou para as terras recebidas com o filho José vivendo então numa aprazível planície serpenteada por córregos de águas limpas, tendo como vizinhos, lindeiros, à direita o José Custódio da Silva, casado com a Maria Cândida Gonçalves da Silva. O casal tinham uma filha de nome Carolina Cândida, com quem se casou meu bisavô Jose Mathias na Igreja de Nossa Senhora das Dores, hoje, catedral de Santa Maria em 29 de novembro de 1880. Solenidade testemunhada pelos vizinhos, João Inácio D’Oliveira e o Raymundo Rodrigues de Mesquita. Nas bênçãos nupciais o vigário Padre José Marcelino de Souza Bittencourt. O casal teve vários filhos: o Ferdinando, que morreu com um ano de vida; Laureano (casado com a Virgínia Costa); João (Bento marido da Albertina (Beta)), e o último, meu avô Manoel Pedro, nascido em 1887, quando a bisavó Carolina Cândida faleceu.
Mais tarde, já nos seus cinqüenta e dois anos de idade, o bisavô José “Alemão”, viúvo, com o rancho aos poucos esvaziando com os casamentos dos filhos mais velhos, resolveu casar em 1903, com a prenda Maria Francisca, filha do Claro Henrique de Christo e da Isabel do Espírito Santo estancieiros da vizinhança, na capela de São Pedro em Arroio Grande, testemunhado pelo casal amigo, o alemão João Halch e a esposa brasileira Yone. Francisca, moça solteira nos seus 32 anos de idade, era prima, em segundo grau, da minha futura avó Onorina.
Dois filhos do casal José e Carolina casaram com as filhas do casal de açorianos José Joaquim da Costa e Clarinda e o Manoel Pedro com a sinhá, Onorina de Alcântara, filha do irmão mais velho de Joaquim da Costa, Andreas José e da Dona Felicíssima Maria dos Santos, estancieiro em São Marcos, em Arroio Grande e com quadras de campo na restiga de Arroio do Só. O avô Manuel levou pra compadre os alemães João Halch e o Alberto Schirm, que também seriam padrinhos nos batizados de filhos deste casamento.
Em 1913, com a morte do sogro Andreas, o avô Manoel foi morar na estância administrada pelo cunhado Pedro Jacó, o mais velho na linhagem dos Costa e herdeiro das terras. O tempo foi curto. Minha avó Onorina faleceu em 1918, e talvez o Seu Manoel por sentir a ausência da esposa foi morar perto dos familiares nos Canudos e traçar outro caminho em sua vida, junto aos irmãos, o pai, a madrasta e a avó, pois minha mãe, ainda bebê, necessitava de maiores cuidados. O avô Manoel arrendou também um lote nas terras do tio da finada esposa, uma vez que nada tinha a receber por herança.
Assim os Hinckelmann casaram com os da Costa, Custódio da Silva, Claro de Christo, os Loro, os Rech e os Cechin, e praticamente os vizinhos, na localidade de Canudos, em São Marcos, tinham entre si uma pouco de parentesco. As terras eram transferidas por herança aos filhos varões primogênitos, ou o filhos homem mais velho vivo, e a prática da pequena propriedade lusa dependente da grande propriedade, prosperidade não era tinha lugar naquelas colônias. O caminho mais seguro era enviar os filhos à cidade, na casa de parentes ou amigos para estudar. A terra não seria dividida.
Lá na Restinga nasceu minha mãe Aurora em quatro de abril de 1916. A data é apenas a memória de mamãe da transmissão oral de seu pai. Não encontrei nenhum registro sobre seu batizado, uma vez que o registro de nascimento civil ela fez nos anos 40 antes de casar no civil com meu pai Quirino. É provável que o padre que a batizou na fazenda anotou na caderneta e esqueceu de transcrever para os livros. O único documento com referência da infância de minha mãe que encontrei está no Arquivo Público do RS em Porto Alegre. Uma certidão de tutela deferida em 20 de julho de 1927 (por sinal eu nasci vinte e dois anos depois) em favor do Sr. Luiz Schmidt Sobrinho, a pedido de meu tio Felício, que prestando o Serviço Militar alegava não ter condições de atender e assumir compromissos com a irmã de 11 anos de idade indicando o amigo de seus falecidos pais para aguarda de sua irmã.
No relato apresentado neste livro, pacientemente elaborado por meu irmão caçula José Antonio é possível viajar pelo nosso Rio Grande nos tempos em que se construía a nação brasileira. Num momento da história que não existia o conceito de brasileiro, a nacionalidade brasileira. Os índios simplesmente não “existiam” na opinião dos migrantes, as famílias eram alemãs, açorianas e paulistas, mesmo que seus membros estivessem no solo gaúcho há várias gerações. Os novos imigrantes italianos eram discriminados por seus costumes e crenças. Vemos também a chegada da máquina, no “engenho de cana do Maximiliano” o entretenimento alemão do salão de baile. A divisão do trabalho que começa surgir. O fazedor de gamelas, de rapaduras, de cigarros, o trabalho familiar, e as “terras que tudo se plantando dá”. Observa-se a transmissão oral da poesia e da música e como foram sendo construídas as várias versões sobre o mesmo tema; as crenças, os rituais dos cristãos novos e a urbanização do Brasil; as lutas dos gaúchos em busca de uma identidade, o positivismo gaúcho de Júlio de Castilhos, o federalismo de Borges de Medeiros, Flores da Cunha e Assis Brasil, e mais tarde a “moda” dos “camisas verdes” e dos getulistas. A germanização de outras regiões, que pela omissão do Estado reforçava o isolamento de colonos que se orientavam no uso do idioma alemão, e da escola como forma de defesa e que mais tarde, serviu de motivo de repressão.
O início do capitalismo liberal, que apresentou novas oportunidades de obtenção de renda, a exemplo do Seu Quirino (meu pai) que, usando sua criatividade, recicla as sucatas, transformando as carcaças de veículos abandonados pela falta de combustível, em carros movidos a carvão vegetal.
Vemos no final do relato o cotidiano no último reduto de terras devolutas do estado gaúcho: o município de Três Passos, o local da primeira guerrilha dos tempos do Regime Militar, o local do onde nasceu o MST.
Mas o que importa é realmente a memória viva que minha mãe, Dona Aurora, que contou histórias em seu relato de histórias de vida inúmeras vezes e para não ser esquecida a riqueza de história social e política gaúcha do início do século XX, e de minha família contida nas páginas de pequeno livro é também uma parte da história da nacionalidade brasileira feita deste cadinho de etnias. Disso, tenho orgulho de ter como nomes de família Luxemburguês-alemã - Bourscheid, Diescher, Glasser, Heineck, Trein, Moog, Becker, Muller, tem o lado teuto-luso-brasileiro ponteado pelo “gaudério” João Hinckelmann e da Juliana de Chaves Cavalheiro os nomes de, Custódio, Gonçalves, da Silva, dos Santos e da Costa perpetuados nos nomes dos filhos de minha mãe. Hoje, posso me considerar um autêntico gaúcho que usa bombachas, toma mate, come polenta e cuca, tomando vinho, pinga e cerveja, e às vezes mais “grosso que cinamão de tapera”, que traz na cultura, nas relações, na música os resquícios dessa mistura de etnias.
Agradeço ao mano José Antonio, companheiro de muitas pescarias e saraus que teve a brilhante idéia de registrar as falas e transcrever e organizar este livro para manter viva a vida da Dona Aurora.
João Teodoro Bourscheid. Ijuí, dezembro de 2006.





Agradecimentos: Ao Padre Luizinho Sponchiado da Paróquia de Nova Palma, RS, ao Frei Rovídio Costa do Instituto Superior de Teologia de Porto Alegre, aos funcionários do Arquivo Público e do Arquivo Histórico de Porto Alegre, as funcionárias Kely e Christine da Cúria Diocesana de Santa Maria e a Dona Vanessa do arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre pela atenção as minhas consultas.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Gaiteiro: Caricatura do autor

ESCOLHENDO AS ALMAS

Texto de: O Baú da Dona Aurora - José Antonio Bourscheid, conforme narrativa de Candida Aurora Bourscheid

ESCOLHENDO AS ALMAS

Meu pai contava uma história de dois homens que resolveram roubar uma plantação de maçã. Roubaram um saco cheio de maçãs e queriam dividir elas. Mas aonde? Tinham medo de serem vistos. Então disse um deles. ¾ Vamos lá no cemitério, é noite, ninguém vai nos ver. Fizeram assim. Então estavam os dois ladrões dentro do cemitério, mas perto da entrada, dividindo as maçãs roubadas.
Esvaziaram o saco de maçãs no chão, pra dividir, mas duas maçãs rolaram e foram parar no meio da rua. Bem, começaram a dividir as maçãs. Esta é minha. Esta é tua. Esta é minha. Esta é tua. Então dois homens começaram a passar pela rua e os dois ladrões continuaram dividindo as maçãs. Esta é minha. Esta é tua. Esta é minha. Esta é tua. Os dois homens que vinham passando na rua ficaram assustados. Esta é minha. Esta é tua. Acharam que eram as almas do cemitério que estavam falando e que queriam pegar as almas deles. Então disse um dos ladrões: E aquelas duas que estão no meio da rua? Ah. Disse o outro. Aquelas duas pode ficar pra ti. Os dois homens correram apavorados.
Meu pai contava uma história de dois homens que resolveram roubar uma plantação de maçã. Roubaram um saco cheio de maçãs e queriam dividir elas. Mas aonde? Tinham medo de serem vistos. Então disse um deles. ¾ Vamos lá no cemitério, é noite, ninguém vai nos ver. Fizeram assim. Então estavam os dois ladrões dentro do cemitério, mas perto da entrada, dividindo as maçãs roubadas.
Esvaziaram o saco de maçãs no chão, pra dividir, mas duas maçãs rolaram e foram parar no meio da rua. Bem, começaram a dividir as maçãs. Esta é minha. Esta é tua. Esta é minha. Esta é tua. Então dois homens começaram a passar pela rua e os dois ladrões continuaram dividindo as maçãs. Esta é minha. Esta é tua. Esta é minha. Esta é tua. Os dois homens que vinham passando na rua ficaram assustados. Esta é minha. Esta é tua. Acharam que eram as almas do cemitério que estavam falando e que queriam pegar as almas deles. Então disse um dos ladrões: E aquelas duas que estão no meio da rua? Ah. Disse o outro. Aquelas duas pode ficar pra ti. Os dois homens correram apavorados.